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Segunda Noite

Meu sonho foi assim.

Ao chegar em meu quarto pelo corredor, depois que me retirei do gabinete do sacerdote, encontrei a lâmpada andone emitindo uma luz baça. Apoiei um dos joelhos ao com e aticei a mecha, quando um baque surdo dobre o suporte pintado de carmesim. Simultaneamente o quarto clareou à luz refulgente.

A pintura da porta de papel corrediça fusumá é de autoria de Buson. Os salgueiros sombrios estão pintados mais fortemente aqui ou ali por causa da perspectiva, e um pescador, parecendo estar com frio, inclina o guarda-chuva e segue caminhando pela barragem. No esconso toko pende uma pintura retratando o Bodhisattva Monju ao mar. O incenso, não de todo queimado, continua exalando cheiro no canto escuro do quarto. Por se tratar de templo espaçoso reina o silêncio, não se percebendo a presença de pessoas. A sombra circular do candeeiro redondo desenhada no teto escuro pareceu respirar quando voltei meu rosto para cima.

Conservando a mesma postura, introduzi a mão direita sob o coxim que ergui com a esquerda, quando então constatei que se encontrava no lugar o que procurava. Sua existência me tranquilizou, de modo que ajeitei o coxim para conservá-lo no lugar de antes e sobre ele me sentei bem sentado com as pernas cruzadas.

— És samurai. Como tal, será inadmissível que não consigas atingir à iluminação satori — foram as palavras proferidas pelo sacerdote.

— Já que não consegues apreendê-la — continuou — não deves ser samurai.

— Escória da Humanidade, isto o que és — emendou.

— Ah-han, te enfezastes? — riu.

— Se te sentes ultrajado, traze até a prova de ter alcançado a iluminação satori. Com essas palavras, virou displicentemente o rosto. Que desaforo!

Até que bata a hora seguinte no relógio colocado no esconso toko do salão ao lado haverei de chegar ao satori. Depois disso, voltarei ao gabinete para dar a minha resposta. Lá farei a permuta de iluminação com a vida do sacerdote. Não conseguindo atingi-la, não poderei tirar-lhe a vida. Custe o que custar, preciso chegar ao satori. Sou samurai.

Caso não consiga, darei fim à minha vida. Ultrajado, um samurai não pode continuar vivo. Morrerei com dignidade.

Quando acabei de pensar dessa forma, minha mão se meteu outra vez debaixo do coxim e retirou, num puxão, o punhal de bainha carmesim. Ao empurrar para frente a bainha vermelha segurando fortemente o punho da arma, a fria lâmina brilhou instantaneamente no quarto escuro. Tive a sensação de que, de minha mão, entes terríveis escapavam resvalantes e que, tendo-se juntado quase todos na ponta do espadim, aí concentravam um desígnio mortífero. Vendo que essa lâmina aguçada se tornava inexoravelmente pontiaguda na sua extremidade, encolhida até chegar a parecer a ponta de uma agulha, repentinamente me deu vontade de dar uma estocada. O sangue afluiu ao meu pulso direito, e o de punho da arma ficou pegajoso. Meus lábios tremeram.

Devolvendo o punhal à bainha, coloquei-o no meu lado direito. Depois, sentei-me cruzando as pernas para meditar. O nada, disse Joshu. Que vem a ser o Nada? Bonzo de uma merda! — Rilhei os dentes.

Por ter apertado os dentes molares com força, uma exalação quente de ar escapa impetuosamente de minhas narinas. Doem-me as têmporas tensionadas. De propósito, arregalei os olhos o dobro do costume.

Vejo a tela de pintura. Vejo a lâmpada andone. Vejo a esteira tatame. Vejo bem visto a careca do sacerdote. Ouço até o riso de escárnio que soltou abrindo a boca de crocodilo. Que Bonzo acintoso. Aconteça o que acontecer, preciso decepar aquela careca. Para tanto, hei de chegar ao satori — Não obstante, o cheiro do incenso continuou me perseguindo. Diacho! É apenas um incenso!

Dei aí, repentinamente, um soco a valer na minha própria cabeça. Depois, rangi meus dentes molares o quanto podia. O suor correu das axilas. Minhas costas endureceram como rochas. As juntas dos joelhos ficaram doloridas num repente. Nem me importava que eles se arrebentem — cheguei a pensar. E, todavia, doem. O Nada custa a surgir. Ao primeiro sinal de seu aparecimento, a dor recomeça. Dá raiva. Contorço-me agoniado. Sinto-me desfeiteado ao extremo. As lágrimas rolam aos borbotões. Dá-me ganas de, num lanço, arremessar-me a um rochedo para despedaçar os ossos e a carne de qualquer jeito.

Mesmo assim me contive e fiquei sentado sem me mexer. Resistia, tendo acumulado no peito aflições difíceis de suportar e que, levantando todos os músculos do corpo, fervilham que fervilham por se expelirem através dos poros. Todos os lugares, entretanto, se encontravam completamente tapados, e esse estado, que parecia não oferecer nenhuma saída, era a representação de uma crueldade sem fim.

Entrementes, minha cabeça ficou esquisita. A lâmpada andone e a pintura Buson, a esteira tatame e a estante chigaidama, tudo parecia ora inexistir. E, todavia, o Nada teimava em não se revelar diante de mim. Tinha a sensação de que estivera sentado à toa. Foi quando, inopinadamente, o relógio da sala vizinha começou a dar a hora.

Sobressaltai-me. Levei imediatamente a mão direita ao punhal. O relógio bateu pela segunda vez.

 

(SOSEKI, 1996, p. 19-22)

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